A REGULARIDADE FISCAL E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL – STJ x STF

A REGULARIDADE FISCAL E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL – STJ x STF

 

No último dia 4 de setembro, o Min. Luiz Fux recém empossado presidente do Supremo Tribunal Federal deferiu liminar na RCL 43169/SP para afastar entendimento que vinha se consolidando no Superior Tribunal de Justiça de inexigibilidade de regularidade fiscal do devedor para o regular prosseguimento da recuperação judicial.

O artigo 57 da Lei 11.101/2015 prescreve que:

Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.

O posicionamento que vinha sendo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça se consolidava no sentido de que “exigir a regularidade fiscal previa do devedor implicaria em inviabilidade de toda e qualquer recuperação judicial”, o que em outras palavras afastava a incidência plena do artigo 57 das recuperações judiciais.

Em 26 de junho de 2020 a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em voto relatado pela Ministra Nancy Andrigui no REsp 1864625/SP, ratifica-se este entendimento:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. ART. 57 DA LEI 11.101/05 E ART. 191-A DO CTN.

EXIGÊNCIA INCOMPATÍVEL COM A FINALIDADE DO INSTITUTO. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E FUNÇÃO SOCIAL. APLICAÇÃO DO POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA LEI 11.101/05.

  1. Recuperação judicial distribuída em 18/12/2015. Recurso especial interposto em 6/12/2018. Autos conclusos à Relatora em 30/1/2020.
  2. O propósito recursal é definir se a apresentação das certidões negativas de débitos tributários constitui requisito obrigatório para concessão da recuperação judicial do devedor.
  3. O enunciado normativo do art. 47 da Lei 11.101/05 guia, em termos principiológicos, a operacionalidade da recuperação judicial, estatuindo como finalidade desse instituto a viabilização da superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Precedente.
  4. A realidade econômica do País revela que as sociedades empresárias em crise usualmente possuem débitos fiscais em aberto, podendo-se afirmar que as obrigações dessa natureza são as que em primeiro lugar deixam de ser adimplidas, sobretudo quando se considera a elevada carga tributária e a complexidade do sistema atual.
  5. Diante desse contexto, a apresentação de certidões negativa de débitos tributários pelo devedor que busca, no Judiciário, o soerguimento de sua empresa encerra circunstância de difícil cumprimento.
  6. Dada a existência de aparente antinomia entre a norma do art. 57 da LFRE e o princípio insculpido em seu art. 47 (preservação da empresa), a exigência de comprovação da regularidade fiscal do devedor para concessão do benefício recuperatório deve ser interpretada à luz do postulado da proporcionalidade.
  7. Atuando como conformador da ação estatal, tal postulado exige que a medida restritiva de direitos figure como adequada para o fomento do objetivo perseguido pela norma que a veicula, além de se revelar necessária para garantia da efetividade do direito tutelado e de guardar equilíbrio no que concerne à realização dos fins almejados (proporcionalidade em sentido estrito).
  8. Hipótese concreta em que a exigência legal não se mostra adequada para o fim por ela objetivado – garantir o adimplemento do crédito tributário -, tampouco se afigura necessária para o alcance dessa finalidade: (i) inadequada porque, ao impedir a concessão da recuperação judicial do devedor em situação fiscal irregular, acaba impondo uma dificuldade ainda maior ao Fisco, à vista da classificação do crédito tributário, na hipótese de falência, em terceiro lugar na ordem de preferências; (ii) desnecessária porque os meios de cobrança das dívidas de natureza fiscal não se suspendem com o deferimento do pedido de soerguimento. Doutrina.
  9. Consoante já percebido pela Corte Especial do STJ, a persistir a interpretação literal do art. 57 da LFRE, inviabilizar-se-ia toda e qualquer recuperação judicial (REsp 1.187.404/MT).
  10. Assim, de se concluir que os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilégio do crédito tributário), não tem peso suficiente – sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação – para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete.

RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.

(REsp 1864625/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2020, DJe 26/06/2020)

Pois bem, no julgamento da RCL 43169, o Ministro Luiz FUX deferiu a liminar para reconhecer a incidência do artigo 57 da Lei 11.101/2005, sob o forte argumento de que as negociações privadas não podem implicar em sobrestamento das negociações do devedor com o Poder Público, senão vejamos:

  Em verdade a lógica do sistema não ostenta o caráter draconiano colimado na decisão reclamada. De lege lata, a exigência da certidão foi desenhada pelo legislador para que o devedor regularizasse a sua situação a partir do pedido de parcelamento formalizado junto à Administração Tributária. Consectariamente, o deferimento do pedido induz à suspensão da exigibilidade dos créditos tributários (art. 151, VI do CTN), permitindo a expedição de Certidão Positiva com Efeitos de Negativa, que atesta a regularidade fiscal da empresa e permite a concessão da recuperação (art. 206 do CTN).

    A fortiori, o que os dispositivos afastados na decisão reclamada impõem é que para além da negociação com credores privados, o devedor efetive a sua regularização, por meio do parcelamento, de seus débitos junto ao Fisco. Até porque, a não efetivação desta medida possibilita a continuidade dos executivos fiscais movidos pela Fazenda (art. 6º, § 7º da Lei 11.101/05), o que, em última instância, pode resultar na constrição de bens que tenham sido objeto do Plano de Recuperação Judicial, situação que não se afigura desejável.

    Mais recentemente também é possível vislumbrar, em âmbito federal, a expedição da Certidão de Regularidade Fiscal ao devedor que realiza a transação tributária com o Fisco nos termos da novel Lei 13.988/2020.

    Ou seja: as disposições contidas nos arts. 57 da Lei 11.101/05 e 191-A do CTN não interditam o pedido de recuperação judicial do devedor da Fazenda Pública, apenas exigem que a regularização de tais débitos dê-se dentro das balizas legais.

A decisão cautelar proferida ganha relevância com a atual recessão econômica, na qual empresas dos mais diversos setores enfrentam dificuldades e recorrem à Lei de Recuperação Judicial e Falência para buscar uma forma de soerguimento de suas atividades. A manter-se o entendimento perfunctório exarado pelo Ministro Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal estará colocando em xeque parcela importante do empresariado nacional.

Mario Augusto Batista de Souza é sócio da Área de Direito Empresarial e Estruturação de Negócios da Dalledone & Advogados Associados.